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Nota Prévia
0.1.Tendo sido apresentados diversos projetos de lei visando permitir a eutanásia, sem embargo de uma certa linguagem eufemística falar em “antecipação da morte” (Bloco de Esquerda) e “morte medicamente assistida” (PAM – Pessoas Animais, Natureza e Partido Ecologista os “Os Verdes”), sendo o projeto do Partido Socialista o único que utiliza na sua epígrafe a expressão “eutanásia não punível”, todos eles têm em comum três traços identitários:
(i) A eutanásia destina- se a situações de doentes terminais e em situação de sofrimento, desde que, sendo maiores de idade, sejam capazes de possuir capacidade de expressar uma vontade livre e esclarecida;
(ii) Fazem prevalecer o valor da autonomia individual, enquanto expressão de uma liberdade ou autodeterminação próprias, sobre o valor da inviolabilidade da vida humana;
(iii) Incumbem os médicos de realizar a vontade de tais doentes terminais em antecipar a morte, pretendendo reformular o conceito de ato médico e os deveres deontológicos dos médicos ao serviço da vida.
0.2. O tema da eutanásia, sem dúvida a questão fraturante mais complexa que uma certa esquerda política axiologicamente americanizada resolveu importar, comporta questões de natureza ideológica, jurídica e ético- deontológica, as quais se podem resumir nos seguintes termos:
(i) Será que a eutanásia ou a ajuda ao suicídio é uma realidade moderna, expressão de um revigoramento ideológico neoliberal nos valores ou, pelo contrário, as suas raízes históricas são mais antigas e filiam- se numa conceção político- ideológica de matriz totalitária?
(ii) Será que, à luz da ordem constitucional, um conflito entre os valores da liberdade e da inviolabilidade da vida deve ser resolvido a favor da liberdade ou, pelo contrário, a inviolabilidade da vida humana é um valor que goza de prevalência face à liberdade individual?
(iii) Será eticamente admissível alguém exercer a sua autonomia decisória de antecipação da morte usando um terceiro para o efeito, encarregando o Estado os médicos de executarem essa função, em sentido contrário às regras deontológicas que pautam a respetiva profissão?
A resposta a tais questões, apesar de poder ser metodologicamente orientada para uma ótica filosófica ou até jurídico- criminal, vai circunscrever- se aos contributos provenientes da História das Ideias Políticas, do Direito Constitucional e do Direito Administrativo – e, curiosamente, é neste último domínio, no âmbito jusadministrativo, que a análise a desenvolver assume particular relevo, até pelas implicações no âmbito da teoria das fontes de Direito, pois coloca o tema das relações entre a lei do Estado e a existência de espaços de reserva normativa de decisão a favor de outras entidades distintas do Estado.
0.3. O presente estudo, escrito quase na integra durante as férias de Natal, ressente- se de uma investigação bibliográfica e jurisprudencial circunscrita, nem por isso, no entanto, menos válida ou atentatória da solidez das conclusões alcançadas.
Os resultados do estudo agora divulgado passam a estar sujeitos à discussão contra- argumentativa, numa área especialmente permeável às pré-compreensões axiológicas de cada um; também por isso, todavia, particularmente aferidora da tolerância e do respeito no debate científico das ideias – como escrevia Karl Jaspers, “é imprescindível a humildade da permanente interrogação na própria certeza do instante” (in Iniciação Filosófica, 9ª ed., Guimarães Editores, Lisboa, 1998, p. 72), talvez seja isso, afinal, o que separa os políticos e os cientistas...